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Oficina
de Cabo Verde «Em
alto mar, na costa atlântica africana, um arquipélago chamado Cabo
Verde, não tem, em processo de cicatrização, como em Moçambique,
ou abertas como em Angola, as feridas da guerra. Os jovens actores de lá
não têm memória de guerra na sua história pessoal.
Outros problemas os afectam - ausência de chuvas, aridez do solo, a prática
tradicional da imigração -, são desafios que a natureza e
as estruturas económicas lhes colocam, não o trauma sempre abominável
das batalhas sangrentas. [...] A predisposição festeira do povo
é o que mais aproxima Mindelo (creio que Cabo Verde como um todo) da atmosfera
baiana. E na oficina a tendência foi reforçada pela participação
generosa de grupos de capoeira, de carnaval e de São João, tornando
mais explícita e animada a festa em que se transformaram os trabalhos.
Nos depoimentos, nas evocações dos espaços da infância,
os actores permitiram-se o mergulho na memória e no imaginário.
Trouxeram à tona particulares circunstâncias de vida daquela sociedade,
lembranças de privações por conta das secas quase ininterruptas
na ilha (praticamente em todo o arquipélago) e da escassez de trabalho,
que força grandes contingentes da população a imigrar.
Uma constante nas improvisações e nos depoimentos é a imigração.
Quase todos os participantes têm parente próximo - pai, irmão,
tio - imigrante. Dos imigrantes (ou do dinheiro que os imigrantes enviam para
o sustento da família) vem boa parte da receita do país. O produto
em oferta, neste caso, é a força de trabalho. Mas todo o imigrante
tem história, tem laços afectivos na sua terra. Fortes laços,
para os que imigram e para os que ficam, que transformam a nostalgia numa das
expressões mais enérgicas do caboverdiano - um homem sempre olhando
o horizonte por sobre o mar, prisioneiro do Oceano. Na própria raiz
da nação a ideia de trânsito de uma para outra terra está
presente. Eram ilhas desabitadas antes de os portugueses chegarem e as transformarem
num grande entreposto de escravos. Por lá passava a população
desterrada do continente africano para o Novo Mundo, especialmente o Brasil. Ao
longo da história de Cabo Verde as chegadas e partidas através do
mar foram deixando suas marcas e a inefável nostalgia da terra - ainda
que na própria terra se esteja. Os efeitos da imigração
sobre a vida familiar, assim como a permanente lida com a terra, nessa ilha vulcânica,
despojada de água doce, de chuva e de plantas, mostravam-se nas oficinas
sempre acompanhados do humor, da alegria natural daquele povo. A chegada de grupos
visitantes, o de capoeira, o do carnaval, o de São João, estimulou
os actores a actualizar na dança, no canto, nos jogos os seus rituais,
as suas divindades. Foi, portanto, cheio de nostalgia, mas também de
ritmos e de alegria a última oficina do projeto na África, já
dentro do Oceano Atlântico, virtualmente a caminho do Brasil. De volta ao
ponto de partida.» (Sebastião Milaré) |