A inventariação das salas de teatro dos países lusófonos, propósito enunciado pela Cena Lusófona desde os primeiros momentos da sua existência associativa, foi uma actividade desenvolvida de acordo com ritmos nem sempre regulares. As razões dessa inconstância prendem-se, essencialmente, com a dificuldade de mobilização dos meios necessários para a concretização sistemática de uma tal empresa e com o facto de, sob o ponto de vista efectivo, essa actividade não ser propriamente central, no âmbito os propósitos mais vastos da Associação Portuguesa para o Intercâmbio Teatral. Contudo, e ao longo do tempo, foi sendo desenvolvido trabalho de levantamento tendente à construção de uma base de dados, tão completa quanto possível, dos espaços cénicos disponíveis para digressões ou produções locais. As oportunidades para a realização do inventário surgiam sempre que uma missão da Cena se desenvolvia num determinado país, ora a organização de uma Estação, ora uma co-produção, ora ainda a instalação ou o equipamento de um Centro de Intercâmbio Teatral, CIT. Foram, nesses locais e nessas circunstâncias, efectuados levantamentos exaustivos das condições físicas dos teatros e das salas onde se praticavam artes cénicas. Eram mobilizados os associados com maior sensibilidade profissional para os espaços e respectivos equipamentos de cena, arquitectos, cenógrafos, técnicos de som e de luz, ou ainda fotógrafos, ou encenadores que ocasionalmente visitavam espaços e os referenciavam. Recordo aqui as prestações inestimáveis do João Mendes Ribeiro, do Orlando Worm, do Flávio Tirone, do José Carlos Faria, do Augusto Baptista e mesmo do Andrzej Kowalski.

De 1998, encerrada que foi uma primeira fase, ao longo da qual os objectivos ainda se estavam a construir pela experiência, permanecem relatórios e folhas de apreciação crítica onde se diluem, por um lado, os propósitos do trabalho – inventariam-se os espaços para uma eventual intervenção de reabilitação, para apoio à produção de espectáculos, ou para ambas as coisas – e, por outro lado, as diversas perspectivas subjacentes às sensibilidades, técnica e cultural, de cada um dos já referidos membros da equipa. Feito esse trabalho, constatou-se a necessidade de sistematizar e, dentro do possível, homologar, os dados recolhidos, ou a recolher, em fichas que pudessem comportar, de um modo absoluto e comparativo, o máximo de informação sobre espaços disponíveis para espectáculos. Foram, então, concebidas umas fichas com o propósito de englobar duas valências essenciais: o fornecimento de informação acerca das potencialidades cénicas dos espaços e, paralelamente, a contribuição para o estabelecimento de critérios rigorosos de opção, no caso de eventuais intervenções de reabilitação, dada através da avaliação histórica, funcional e construtiva, de cada um deles. Todavia, não era ainda possível referirmo-nos às informações recolhidas, e sistematizadas pelas referidas fichas, como um levantamento. O levantamento dos espaços é uma tarefa bastante específica e necessariamente lenta, dificilmente exequível para a quantidade de salas e de recintos já visitados. O que existe é um inventário em formação, incompleto pelo que diz respeito à cobertura territorial, mas com informação explícita e concreta pelo que diz respeito às potencialidades cénicas e ao carácter urbano e arquitectónico de um considerável número de edificações. Finalmente, em 2006, reflectindo sobre toda esta actividade de inventariação dos espaços cénicos, foi decidido avançar para uma listagem que, de um modo mais sistemático, pudesse assumir-se como corolário mais coerente do trabalho desenvolvido.

Havia então um conjunto de dados, levantado de modo mais homogéneo e equilibrado, que dizia respeito a Cabo Verde, de acordo com um levantamento da situação feito em 2005, o qual, entretanto, se alterou substancialmente. Tratou-se então de o actualizar e completar, inserindo as informações nas fichas entretanto preparadas. São dados reavaliados in-loco, através de uma missão levada a cabo por Augusto Baptista, em 2009, e posteriormente confirmada e ampliada através de canais de comunicação estabelecidos com proprietários e utentes dos espaços. É dessa informação que ora se dá conhecimento público, sem deixar de referir algumas chaves prévias de leitura.
Há sempre, porém, algo de muito fluido num trabalho com estas características, espaços de carácter mais ou menos efémero ou mesmo outros, que, não o sendo, correm o risco de ser demolidos – o Cine-Teatro Éden Park, no Mindelo, é disso o exemplo mais emblemático, mas há outros.

ECCV2005.823Cine-Teatro Éden Park (Mindelo, Cabo Verde)

Num trabalho cujo objectivo primordial é a caracterização e o inventário de casas de espectáculo, torna-se consideravelmente difícil estabelecer limites rígidos entre o que pode e o que não pode ser considerado uma “sala”, ou mesmo um “teatro” (1). Tanto mais quando estamos em presença de locais e de culturas que propiciam a realização de artes cénicas em circunstâncias cuja convencionalidade nem sempre pressupõe um espaço dedicado. Para Cabo Verde, foi então estabelecido que, por um lado, havia que cobrir todo o espaço territorial e prestar alguma atenção ao equilíbrio entre os espaços referidos nas diversas ilhas; por outro lado, foi decidido adoptar como critério a selecção de espaços nos quais se processassem, com relativa regularidade, práticas de artes de espectáculo. Ficariam, assim, excluídos recintos ocasionais para festas e bailes, mas incluir-se-iam muitos locais onde, em determinadas ocasiões, houvesse espectáculos, concertos, representações de diversa ordem e, evidentemente, teatro (2). Foram, com efeito, estes os critérios base que guiaram as opções, sempre que existiam dúvidas acerca da pertinência representativa de um determinado espaço. Uma outra circunstância a esclarecer diz respeito ao carácter da informação. Trata-se de um levantamento com finalidades utilitárias, ou seja, deverá servir, em primeira instância, para actores, encenadores e companhias que possam estar interessados em conhecer as condições de acolhimento para determinada produção, em qualquer local de Cabo Verde. Pode também servir para um reconhecimento sistemático das condições dos espaços, para efeitos de política cultural, por exemplo. Por essa razão, é dada mais importância às condições físicas e técnicas de cada um dos locais visitados do que ao seu significado arquitectónico, propriamente dito. Tal facto não significa, porém, que, nalguns casos devidamente referenciados, não estejamos em presença de obras qualificadas de arquitectura, que deveriam ser assinaladas também por esse seu atributo. São disso exemplo, desde logo, o Cine-Teatro Éden Park, no Mindelo, mas também os Cine-Teatros da Praia e da Assomada, em Santiago.

ECCV2005.440Cine-Teatro da Assomada (Santiago, Cabo Verde)

ECCV2005.450Cine-Teatro da Assomada (interior)

O Éden Park foi construído em 1922 por uma empresa familiar, que manteve a gestão e a actividade até há poucos anos. Começando por ser um hangar coberto para projecção de cinema e outros espectáculos, sofreu grandes obras em 1945, que lhe deram, no essencial, a forma interior actual. Foi sofrendo sucessivas obras de adaptação. Tem uma frente urbana modernista, construída em meados dos anos sessenta, que relaciona o grande pátio de acesso – como se fosse um foyer de ar livre – com a Praça Amílcar Cabral. Já o edifício, propriamente dito, recuado em relação à praça, tem uma imagem Art-déco algo tardia, mas sóbria e elegante. Devia ser considerado, por excelência e propriedade, a sala de espectáculos da cidade.

O Cine-Teatro da Praia, por sua vez, construído no início dos anos cinquenta, é um edifício de gaveto com uma relação de inserção urbana privilegiada. Fica situado na Praça Amílcar Cabral, em pleno Platô da Praia. Embora seja uma sala de grande valor simbólico, no contexto da cidade, tem uma relação desproporcionada entre o palco e a zona de público, por ser demasiado alongada.

ECCV2005.460

Cine-Teatro da Praia (Santiago, Cabo Verde)

Já o Cine-Teatro da Assomada é uma pequena sala, construída na mesma época, com uma escala e uma inserção urbanas perfeitamente adequadas ao contexto, numa imagem Art-déco digna, embora singela. Para além destes espaços, a capital tem ainda duas grandes e bem equipadas salas, o edifício da Assembleia Nacional e o Auditório Jorge Barbosa. A primeira, uma magnífica sala de espectáculos, construída pela Cooperação Chinesa, já depois da independência, devido à sua função actual não é utilizada de acordo com a dimensão potencial das suas capacidades cénicas e técnicas.

ECCV2005.391Auditório Nacional Jorge Barbosa (Santiago, Cabo Verde)

ECCV2009.135Assembleia Nacional (Santiago, Cabo Verde)

As fichas realizadas têm a intenção de compilar toda a informação recolhida sobre os espaços cénicos de Cabo Verde. Foram revistas em 2009, na sequência de um trabalho de reconhecimento e actualização, levado a cabo por Augusto Baptista. Os desenhos de levantamento, necessariamente sumários e com pouco detalhe, estão digitalizados e podem ser utilizados como suporte técnico de eventuais projectos cénicos.

Planta do Cine Teatro Eden-ParkPlanta do Cine-Teatro Éden Park

Mas a actualização desta informação deverá ser constante e sistemática. Para isso será necessário proceder-se à fase seguinte deste trabalho sobre os espaços cénicos de Cabo Verde. A passagem a suporte digital da totalidade das fichas e a sua disponibilização on line permitirão uma base de dados cuja informação possa vir a ser intensamente utilizada e sistematicamente actualizada.

Notas:
1- Para a caracterização genérica dos diferentes espaços, foi adoptada a seguinte tipologia: Teatro (equipamentos com caixa de palco, projectada especificamente para as artes cénicas), Cine-Teatro (equipamentos com esta dupla função), Salão (salas com palco, projectadas para a função espectáculo), Alternativo (recintos cobertos adaptados à função espectáculo) e Ar livre (espaços a descoberto com palco).

2- Em alguns casos (em particular na Boavista e no Maio), estes recintos (na maior parte polivalentes desportivos) são mesmo a única alternativa possível para a apresentação de espectáculos. Por essa razão, e embora sem o detalhe e o carácter exaustivo adoptados para os espaços cénicos considerados enquanto tal, inventariamos igualmente nesta revista um conjunto de “outros espaços” que o trabalho de campo permitiu descobrir. No mesmo sentido, refira-se a existência no Mindelo, S. Vicente, de uma empresa especializada em serviços de montagem de palcos, que opera em todas as ilhas: estrados 2mx1m, altura mínima de 1m e máxima de 1,70m, até 180m2; montagem de estrutura de diversas dimensões em Truss Libera 52 e X30/LITEC para palco com cobertura (mínimo de 6mx6mx6m e máximo de 13mx11mx9m). Possível é também montar tenda para espectáculos (mínimo 200m2 e máximo 1200m2), instalar iluminação (convencional e efeitos especiais), projectar em telas, gravar em vídeo. Faísca Luminotécnica, CP 1238, Mindelo – faísca@cvtelecom.cv.

Texto de José António Bandeirinha (In: Setepalcos nº 6, p. 58-59)

A base de dados dos Espaços Cénicos de Cabo Verde pode ser consultada aqui.