Tudo parte de uma raiz comum, um tronco que cresce em ramificações
multicontinentais. Floripes Negra, o álbum de Augusto Baptista que constitui
a última grande aposta da Cena Lusófona no âmbito editorial,
diz respeito à representação, na Ilha do Príncipe,
de um dos mais antigos e prolixos factos/lenda europeus. Aqui se fala de Carlos
Magno, dos seus heróicos Doze Pares de França, do almirante mouro
Balão e de sua filha Floripes, princesa turca, casta e “inocente”
donzela na versão africana, de seu irmão, o temível guerreiro
mouro Ferrabrás. A par com a tradição do Tchilóli,
na ilha de São Tomé, o Auto de Floripes assume-se como uma das mais
extraordinárias mobilizações culturais populares africanas,
no capítulo das artes teatrais e performativas, profundamente enraizadas
em São Tomé e Príncipe. Floripes fala-nos de ecos longínquos
da mítica Canção de Rolando. Referências medievais
em versão tropical, é isso que fala e mostra Augusto Baptista, num
exemplar trabalho de pesquisa e reportagem, seguindo os rastos do «maravilhoso
carolíngio», desde Trás-os-Montes e Minho até à
«ilha passarinho» do pequeno arquipélago africano de São
Tomé e Príncipe, passando por “outras” Floripes, uma
herança que o tempo e as diásporas tornaram global, das Honduras
ao Brasil, da Índia ao México ou a Espanha. Para o autor a árvore
é um rio, são muitos rios, com uma nascente comum, uma herança
primeva que resultou, em forma de representações teatrais de cariz
popular, numa riqueza cultural múltipla de assimilações,
afinidades, apropriações, partilhas. Augusto Baptista foi às
raízes para se maravilhar, para nos maravilhar, com esta “tropicália
carolíngia”. Augusto Baptista percorreu esses caminhos, como
um romeiro de Santiago, em busca de respostas para as origens e explicações
para a dispersão do Mito e da História. Seguiu os trilhos de Carlos
Magno pelo Norte de Portugal, e encantou-se com duas missões ao “serviço”
da Cena Lusófona (em 1996 e 97) ao Príncipe, onde é negra
a tez de Floripes (curiosamente, e apesar de lhes dar nome, é a única
mulher que surge nestes autos), paixão do cavaleiro cristão Guy
de Borgonha. Augusto Baptista tenta encontrar nesta obra pontos de encontro, caminhos,
pontes entre povos e culturas. A língua portuguesa, no caso, é o
cimento dessas pontes que o autor tenta levantar neste livro. «A Cultura
tem caminhos que às vezes nascem na terra, fluídos, indecisos, depois
crescem e, como um destino, fazem-se ao mar: parecem rios. O Auto de Floripes,
na ilha do Príncipe, é uma cultura feita de rios. De muitos rios:
Lima, Douro, Tejo, Papagaio, Amazonas, Cuanza, Zambeze... É uma cultura
feita de mar. Água doce e sal. Pulsar de marés, galés e madrugadas.
Ondas da História», sublinha o autor. «Assimilada a lenda,
esta será disseminada e recriada, aqui irá converter-se em tradição,
legado cultural a atravessar gerações», acrescenta. Todos
os anos, em meados de Agosto, Santo António do Príncipe torna-se
«no maior palco do mundo». Um palco coberto de céu africano.
«É um acto teatral integral, não se restringe a um palco»,
como explica a Augusto Baptista o presidente do Governo Regional do Príncipe,
Damião Vaz de Almeida. Em Santo António do Príncipe, ao contrário
das Floripes “brancas” portuguesas de Trás-os-Montes ou Minho,
a acção tem lugar na(s) rua(s), desta que é «a mais
pequena cidade do globo». No Príncipe a acção de Floripes
é também bem mais extensa que nas suas congéneres portuguesas,
que não ultrapassam as 4/5 horas de espectáculo. Em África
chegam às 13 horas de representação, de combates entre cristãos
e turcos e paixões de Floripes, que no Príncipe também se
designam por Tragédia ou Cultura de São Lourenço. «O
palco é a rua. O público é actor. E as palavras perdem importância
relativa, diluem-se em longas horas de acção e movimento, em locais
variados». «A 15 de Agosto, toda a manhã, um a um, cristãos
e mouros emergem dos confins do tempo. Sempre em desfile, assaltam, ocupam ruas,
enchem-nas – por artes de teatro – de sons e cores de guerra. Tarde,
noite dentro, terçam armas. Tenso frenesim. Pelejas ao jeito de outrora,
sem quebranto de ânimo», descreve o repórter. «O
auto é nosso», reclamam os do Príncipe, traçando um
destino de autonomia para um rio que nasceu em Portugal. «É lógico»,
salienta Augusto Baptista. «Independentemente da origem, a semente foi transfigurada,
transformada. Incorporou valores, cresceu, foi moldada por mãos negras,
numa outra realidade concreta: humana, geográfica, cultural, religiosa,
histórica. Autónomo, o auto germinou neste cadinho, por um lado
favorável à preservação de características
originais, mas que, por outro, lhe foi introduzindo devagar novas qualidades,
descobrindo outras funções. Foi aculturado, apropriado, num processo
de que não se conhecem os contornos, até assumir hoje um reivindicado
papel na identidade cultural da ilha». Os rios, no entanto, cruzam-se em
deltas de lusofonia. Como explica Damião Vaz de Almeida, «o mais
importante é que se conseguiu conservar esta tradição, mantendo
Portugal ligado a S. Tomé e Príncipe na base da Língua, que
nós falamos, e de outras formas de cultura». O álbum,
para além do enquadramento histórico, social e cultural desta manifestação
teatral, surge recheado de dezenas de fotografias, acompanhadas do precioso ensaio
de Augusto Baptista e de uma legendagem que nos permite praticamente seguir o
auto através das imagens, para além de apresentar resumos dos textos
originais que servem as mais relevantes existências pluricontinentais da(s)
Floripes. Augusto Baptista e a Cena Lusófona dão com esta publicação
um passo importante para a compreensão deste fenómeno, mas têm
a consciência que este trabalho não é suficiente para a completa
percepção desta singular tradição. «É
preciso continuar a pesquisar», exorta o autor, aprofundar correlações
a outros países africanos de expressão portuguesa, o papel do Brasil,
os caminhos da Floripes, outros pontos de união e outras “pontas
soltas”. «E aqui, Continente e Ilhas, Floripes e a saga carolíngia,
contada e difundida por via da História do Imperador Carlos Magno e os
Doze Pares de França, não se circunscreviam no passado ao universo
restrito que hoje se conhece. E depois, do Príncipe tão perto: S.
Tomé. Em tese não se podem excluir hipóteses. Floripes tem
a escala do verbo, a expressão pluricontinental do passado cultural onde
germinou. Chegou ao Príncipe pelas mãos do mar. Isto é seguro.
Quando? Grande é o mar; e, maior ainda, a bruma... Floripes, branca e negra,
e o teatro popular são desafios a reclamar hoje ao nível dos especialistas
dos Sete (mais Um) – final e felizmente todos libertos dos constrangimentos
do passado – um estudo objectivo, multidisciplinar e necessário.
Em cooperação, sem ressentimentos», defende Augusto Baptista.
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