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Teatro Popular

A vida de Roberto do Diabo
Cavalhadas na Beira Baixa
Teias de Cordel
Um Teatro de sete fôlegos
A Descoberta da Moura*
Teatro em Subportela
A folia e o andor
Os Turcos de Crasto*




A vida de Roberto do Diabo


Augusto Baptista

Após 59 anos de interregno, em Sendim, Miranda do Douro, dia 9 de Junho de 2002, voltou à cena "A vida de Roberto do Diabo"[1]. A representação tem trama «nascida de estória popular desde o século XIII na tradição oral francesa» e — ainda segundo Luís da Câmara Cascudo — conheceu desde o século XV várias versões escritas difundidas pela Europa: Inglaterra, França, Espanha. E enfim Portugal, tradução de Jerónimo Moreira de Carvalho, no século XVIII. Deste texto em prosa, entre nós e no Brasil, resultaram inspiradas criações populares, versos com ânsia de palco e raízes de quase um milénio.

Chego a rondar as duas da tarde. Largo da Praça deserto, dir-se-ia ninguém cá morar e ter eu vindo ao engano, não fora a certeza de hoje, em Sendim, haver representação de "O Roberto do Diabo".

A uma senhora que vem à porta espreitar a camioneta da carreira pergunto pelo tablado. «Aí à frente, a trezentos metros, no terreiro do ciclo». Carregado de imbambas, opto por ir ao local avaliar a situação.

À borda esquerda da estrada, portões franqueados, a planura de um espaço aberto, amplo. No enfiamento da entrada, a linha do palco sublinhada por abundância de cadeiras frontais e, no centro do terreno, paquidérmico equipamento de som. Esparsas, algumas almas, sentadas, atentas a quem chega. E não foi difícil saber que os actores se reúnem no adro da igreja: daí, depois das três, virão em cortejo.

Entre os presentes, descubro uma velha comediante de "O Roberto do Diabo", na representação de 1943 em Sendim, há 59 anos: «Fiz de Duquesa, mãe de Roberto e mulher do Duque. Tinha 55 versos, em mulheres era eu que tinha mais».

Entrou na peça aos 20 anos, tem agora 79, chama-se «Preciosa; toda a gente me conhece por Preciosa». Mas, afinal: «Aqui há anos eu soube que não era Preciosa». O esclarecimento surgiu em Miranda do Douro, aquando de uma escritura: «A senhora que estava lá, a empregada, chamava-se Maria da Glória, olhava, olhava, mas não me encontrava. E diz-me ela assim, Aqui não está Preciosa, está Especiosa. E eu disse, Ó Maria da Glória, proponha Especiosa, para mim tanto me faz».

A Especiosa dos Anjos Bodelgo não é a única sobrevivente do elenco de 1943: «Vivos estão o Nuno Gil, que fazia de Roberto em adulto; o António Vilariço, que está na Argentina; e o Amadeu, que fazia de Roberto em bebé». Mulheres, para além da Especiosa, «há a Tereza Dau, fazia de Criada da Muda, tem à roda de 80 anos; e a Albertina Morena, que era a Filha do Imperador».

No ano de 1943 o ensaiador de "O Roberto do Diabo" foi Simão Fanega, já falecido. «Antes havia o José Vilarinho». Face a tanta memória, arrisco perguntar a origem da peça. «E eu que sei...». Vozes laterais elucidam: «Veio dos livros velhos, dos romanos».

Sobre a história que viveu em palco, Especiosa não tem dúvidas: «O Roberto, toda a gente fazia queixa dele, matava, esfolava, porque ele foi gerado pelo Diabo». A satânica gestação teve origem no desespero do francês Duque Alberto, face a um casamento de 17 anos, sem descendência. Ouçamos a Duquesa: «Ele queria muito um filho, e eu disse assim:


Conceba ainda que seja

Agora aqui o Diabo

Ao Diabo entrego o peito

Se for do seu agrado.


Logo nisto concebeu

Uma fera embravecida

Um leão ensanguentado

Cá na nossa Normandia.


Qual outro rei Saul

De todos perseguidor

E um feroz Satanás

E dos homens matador».


Os ensaios eram nas noites de Inverno, e a peça foi representada no Largo da Praça, frente à igreja. Olhos no palco de hoje, ornamentado com colchas coloridas, bandeiras, Especiosa lembra que, «naquele tempo, as casas eram mais estendidas e mais altas. E havia mais campo. A casa que eu tinha era, supomos, aquela do Duque, onde está a bandeira, mas tinha umas escadas para a gente ir para cima».

Aos poucos, mais gente chega ao terreiro, cadeiras de armar na mão, em busca de um local estratégico na planura. Especiosa antecipa o início da comédia: «Vem um Anunciador, diz assim:


Respeitável auditório

A vossa atenção implora

Pela minha fraca pessoa

Para vos dizer agora.


As passagens desta obra

Que de Roberto é chamada

A maldade praticada

E sua cruel manobra.


Em tempos remotos havia na França

Um ducado que hoje existe ainda é certo

O seu soberano chamava-se Alberto

Que os seus maiores lhe deram por herança».


Especiosa com fôlego para atacar os versos todos, interrompo-lhe a recitação. E corro para o adro da igreja, na esperança de aí apanhar os actores, o início do cortejo.



Coitar com o Diabo

Por volta das três da tarde deste domingo, 9 de Junho, o adro transborda de gente trajada à antiga. Câmaras de vídeo, máquinas fotográficas, gravadores, disputam os comediantes. Dos mais solicitados, o casal Duque-Duquesa, sob a tensão de quem nunca se viu nestas andanças e vive o frenesi da estreia.

Alfredo Augusto Fernandes — «posso dizer que sou polivalente, faço um bocado de pedreiro e trabalho no campo» — é Duque Alberto. «O papel principal da comédia praticamente é o meu. Faço a parte do Duque, um homem que não tinha filhos. Finalmente teve um, que saiu verdadeiramente... Ele mais tarde converteu-se».

À mão direita, esposa de palco do Duque, Maria Fernanda Chumbo, professora do Ensino Básico: «Eu, passados 17 anos de estar casada, sinto-me tão frustrada de não dar descendentes para o ducado que, numa noite de desespero, entreguei-me ao Diabo». Pelo ar compungido, avalia-se quanto o acto terá custado à Duquesa. E as trágicas consequências que teve: «Foi daí que nasceu o Roberto, que me pôs a vida num inferno».

Alguém lembra que não é hora de conversas, entrevistas. Daí a pouco, um solene desfile de nobres, plebeus, clérigos, ao lume das notas de uma gaita-de- foles, espanta o sossego da tarde. Quando a procissão chega ao terreiro da comédia, o largo põe-se de pé.

«Antigamente o palco era muito mais comprido e estreito. Era construído com carros de bois alinhados e por cima tábuas, tablas: por isso, tablado». A explicação vem de Altino Martins, o ensaiador. Desta vez, o palco tem as infra-estruturas metálicas da festa de Santa Bárbara, «ficou mais alto, é diferente».

Constante, assegura, é o número de casas construídas, e sua sequência. Da esquerda para a direita dos espectadores, «a gruta e o monte do Diabo, onde se vão passar várias cenas (Diabo, Salteadores, Roberto com a Pastora), depois a escola, o jardim e a casa do Duque, a igreja, a casa do Pontífice, a casa e o jardim do Imperador». Para ajudar a decifração dos espaços — casas a que ouvi também chamar capelas — tabuletas de letra gorda os encimam.

Ocupado o palco, o corpo de actores resguarda-se dos olhares públicos, por detrás das colchas. Entra em cena o Anunciador, voz projectada do alto, solene e grave: Respeitável auditório...

Terminadas as Profecias desta primeira parte, surge Rogério Gracioso, o Tonto:


Mas então não falou bem

Cá o nosso Anunciador?

A mim parece-me que tem

Boa cabeça para doutor!

Lá isso tem, atrém, tem, tem...


Esta personagem «é um misto dos antigos momos, bobos ou jograis e uma espécie de zanni ou polichinelo da Commedia dell' Arte e como truão a sua missão é alegrar as pessoas e preencher todos os espaços vazios da representação, quebrando por vezes a monotonia da obra», diz Valdemar da Assunção Gonçalves. Como refere este autor, os destemperos do Gracioso podem ir longe: «Na Póvoa houve um Tonto que fez sucesso comendo ratos vivos, outro vi-o mamar uma burra em pleno palco (...)». [2]

Comparativamente, Abílio de Jesus Paulo, o intérprete de Rogério Gracioso — atavio burlesco, pelota na mão (bola presa a um elástico, este atado a uma vara curta) — revela-se comedido nos actos e nas palavras: «O meu papel é de galhofa e de crítica. Uso as falas do texto, poucas digo de improviso».

A trama da comédia desbobina-se devagar. Frequente é a presença em palco do Gracioso, destempero e risota a contrastar com a gravidade do contexto, consequência do satânico coito da Duqueza infértil, que, após parto de um mês, «chegou a parir felizmente» o Estafermo em pessoa: Roberto. [3]


Com rapidez o menino traidor

Crescia e ninguém o podia aturar.

Chegou a idade de ir estudar,

O pai entregou-o a um professor.


Não tarda, Roberto mata o docente, mata condiscípulos, lidera quadrilha nos montes. Um rasto de sangue e pecado tinge-lhe a vida: assalta igrejas, persegue padres, calca «o Senhor sacramentado», janta hóstias. Inferniza a vida de todos, de todas.


Forçaremos as casadas

E as viúvas que encontremos.

As solteiras que nos apareçam

Todas nós desonraremos.



A plateia, grandemente feminina, sobressalta-se. Em palco, o Gracioso:


O melhor será voltar

Para trás, Senhor Ministro,

Porque nada bem me cheira isto!


Ainda há pouco vi Roberto

E parecia um Ferrabrás.

E se o voltar a ver

Galgo a fugir para trás!




Um Cristo camarada

A negra fama de Roberto, filho do Diabo, cresce com seus crimes. Mas, perto do fim da primeira parte, cometida toda a sorte de vilanias à casta Júlia Pastora, ocorre a reviravolta: sob a capa de humilde pastor, uma figura aparece a Roberto. No corpo nu, na alva pele de Óscar Salgado, electricista, baixo-ventre cingido por uma fralda de pano cru e descalço como os bebés, revela-se Jesus Cristo:


Roberto, meu camarada,

Agora aqui te venho falar.


Face à inesperada luz e ao apelo camarada, vencida a reserva inicial, Roberto enfim converte-se. E logo a Duquesa, desvanecida, explica ao filho a fonte da antanha maldade:


Teu pai andava muito triste

Por não ter descendentes

Para seu Ducado herdar

E passava o tempo a chorar.


Um dia estando os dois

Em acto de matrimoniar

Ao tempo de conceber

Eu comecei a falar.


E, cábula na palma da mão, como os meninos da escola em que Maria Fernanda, a actriz, é professora:


Dizendo: conceba eu

Inda que seja o Diabo!

Ao Diabo ofereci tudo

Se fosse do meu agrado. [4]


O discurso continua, lancinante pedido de perdão ao Salvador, à Mãe de Deus, ao Santíssimo Sacramento. Roberto agradece o materno esclarecimento e Lusbel, Diabo irado, remete-o para o inferno: estafermas labaredas de um vulcão activo.

Entra-se na segunda parte. A instalação sonora solta acordes de ressonância medieval. De novo em palco, grave, o Anunciador lê as segundas Profecias, resumo do desenrolar da intriga até ao final:


Na parte primeira representada

Já vistes o que vos expliquei.

Na parte segunda também vos direi

Em como Roberto foi perdoado.


Um Anjo do céu, por Deus mandado,

Extinguiu o fogo daquele vulcão,

Tirando Roberto da escuridão

Mandado-o a Roma para ser confessado.


Depois de seu pai o ter perdoado,

Marchou para Roma fazer confissão.

E o Papa o mandou a um Ermitão

Que vivia no monte para ser confessado.


Depois de ao monge se ter confessado

Um anjo aparece e faz referência

Mandando por Deus fazer penitência

Que Roberto aceitou de bom grado.


Mas sem falar, fazendo loucuras

Sete anos assim teria que andar

Comendo somente o que pudesse tirar

Aos cães que visse nas ruas.


Para Roberto alcançar o perdão

E cumprir penitência de tal rigor

Dirigiu-se a casa do Imperador

E ali viveu na companhia de um cão.


O soberano o viu e observou

O mudo um osso ao cão tirar

Manda logo dar-lhe de jantar

Mas o mudo não aceitou.


O Imperador vendo isto, informado ficou

Porque o louco o cão olhava mui sereno.

Conhecendo logo este mistério

Dobrar a comida ao cão mandou.


Sete anos Roberto, com muita paciência,

Viveu na companhia do cão

Cumprindo tal penitência

Que lhe impusera tal Ermitão.




E a muda falou

A assistência está presa ao relato, palavras que a instalação sonora amplifica até à dor de ouvidos. Os convivas de uma festa de casamento largam o salão contíguo e comprimem-se no topo de um murete sobre o terreiro, maravilhados.


Durante o tempo que Roberto cumpria

A penitência, no palácio cresceu

Uma Princesa que o Almirante Judeu [5]

Em casamento ao Soberano pedia.


A Princesa é muda, não pode falar,

Mas por acenos diz que não quer.

O Almirante, com todo o poder,

Ao Soberano vai guerrear.


Roberto, que está cumprindo o dever

Com o cão que no jardim é seu companheiro,

Um anjo do céu lhe vem trazer

Armas de guerra e o arma cavaleiro.


Diz-lhe: Vai, não tenhas temor

De pelejar o Almirante pagão.

Defende a pessoa do Imperador

Mas que não te conheça nenhum cidadão!


Deu-se três vezes a repelição [6]

E o combate cada vez pior!

Mas o guerreiro do cavalo branco

Saiu sempre vencedor!


O Imperador, alegre e contente,

Agora estava no império mais franco

Mas impaciente por não saber

Quem seria o guerreiro do cavalo branco.


Foi quem venceu aquele pagão

E o livrou da assombrosa morte.

Oferece a filha para consorte

Ao guerreiro que for da sua opinião.


A tarde está instável. As ameaças de borrasca no céu pintam o palco de escuro. Atenta, a plateia. Ouvir é aqui a tónica, me haveria de alertar o ensaiador: «Dá-se uma atenção extraordinária à palavra, ao significado da mensagem. As pessoas de mais idade lembram-se dos versos, mesmo as que não entraram na peça, só de ouvir. Agora, se perguntar o que fazia a figura tal, ou como ia vestida, ninguém se lembra». E concluiria: «Recordam-se muito bem os papéis, fala-se com muita clareza, vive-se imensamente o texto e menos a representação. Entrada em palco, marcações, isso é o mais difícil».

O sol espevita por entre nuvens, caloroso, ilumina a cena. Desenho de luz que parece definir ritmos dramáticos.


Queria por força o Almirante Pagão

Àquela Princesa sua mão unir

E ao soberano lhe vai mentir

Dizendo que era ele aquele valente.


O Soberano acredita naquele intrujão

Mas como a Princesa não pode falar

À força a leva para casar

E a Roberto aponta com muita aflição.


Estava o Pontífice naquela função

Que Cristo deixou à Humanidade.

Desprende-se o órgão com vibração

E a muda rompe a falar e diz a verdade:


Tudo é intrujice e falsidade

— a Princesa disse, por fim —

Quem defendeu Vossa Majestade

Foi o louco que está no jardim.


E se em mim não quereis acreditar

Eu darei provas de que vi tudo:

Um anjo veio, e o mandou batalhar

Voltou ao jardim fazendo de mudo.


Nas minhas palavras podeis confiar:

Na última vez vi ele trazer da guerra

Espetado na perna um bocado de lança

E no jardim a vi esconder.


A Princesa falava com eloquência

E estava muito admirada.

Um anjo levanta-lhe a penitência

E Roberto ficou de Deus perdoado.


Foi grande a alegria naquela redondeza:

Não só em Roma mas todo o arredor.

Roberto depois casa com a Princesa,

Herdando a coroa do Imperador.


Mas é possível a qualquer pecador

Das suas culpas alcançar perdão:

Basta pedir com contrição,

Como pediu Roberto traidor.


Aqui dou fim ao meu razoado,

Atendei, senhores, ao que expliquei.

Se no meu discurso algum erro dei

Espero de vós ser desculpado!


Feita a síntese da intriga que em breve animará o palco, transmitida a mensagem moralizante, apresentadas as despedidas, o Anunciador encerra a crónica. Acção demorada e cheia de peripécias espera a plateia. E sempre a palavra, público a la escuita.

Quando, por fim, os actores e figurantes alinham de uma ponta a outra do tablado, passaram-se à volta de três horas e meia de teatro. Entre a assistência, muitas centenas de espectadores, os aplausos sublinham, uma por uma, todas as participações, «sem esquecer as ovelhas, cordeirinhos, cães e o cavalo».




O Crescente e a Cruz

António José Dias da Costa integra "A vida de Roberto do Diabo" no grupo das representações religiosas (in lato sensu), de cariz moralizante.[7] Maurício Guerra, por seu turno, classifica este auto no que designa por "Teatro Popular do Ciclo Guerreiro", dentro do grupo de "Outras representações bélicas" e — como Valdevinos — fora do corpo a que chama "Relatos das guerras entre cristãos e muçulmanos".[8]

A intriga da comédia tem tónica centrada em Roberto, criatura do Diabo convertida em homem de Deus. No curso desta migração, aquando do episódio da penitência, Roberto é incumbido pelos céus de acudir ao Imperador de Roma, seu protector, em combate com um doutrinado antagonista: [9]


Lutarei com força e armas

Aos Romanos perseguirei,

Que sou infiel e não quero

Professar a sua lei.


Entre muitos enredos, o Almirante Pagão acabará por matar o Imperador, mas sucumbirá num novo frente-a-frente com Roberto, que apela à «Santíssima Virgem»: [10]


Guia dos marinheiros,

Advogada dos cristãos!

Dai força e dai valor

Às minhas humildes mãos!


Através da espada cristã e por graça da Virgem, o Bem vence, gorados ficam os intentos do «ímpio e vil traidor» de casar com a princesa


Para depois em Roma

Introduzir a falsa lei

Do estúpido Mafoma

A pior de toda a grei.


A luta entre o Imperador, com a ajuda de Roberto, e o Almirante Pagão tem uma componente também religiosa e decorre no âmbito do antagonismo teatral cristãos-mouros, como acima se ilustra. Por outro lado, e a remeter a intriga para o universo carolíngio (para além do palco geográfico), no final, regista a prosa do folheto de cordel, inspiradora dos versos, ter Roberto deixado um descendente: Ricardo da Normandia, cavaleiro de Carlos Magno e um dos doze pares de França.

Este particular não aparece no enversado de Sendim, ao contrário de uma versão popular brasileira, citada por Luís da Câmara Cascudo, que termina assim: [11]


Ficou Roberto em Roma,

Feito império da nação,

Era muito generoso,

Amava a religião.

Governou com paciência,

Pela Constituição!

Viveu Roberto casado,

No seio da confiança,

Tiveram um filho único,

Que ficou como lembrança,

Foi Ricarte da Normandia,

Dos Doze Pares de França.




Melhor é fazer

O ensaiador Altino Martins, 51 anos, funcionário público, natural de Paradela, Miranda do Douro, tem no tio — «o Lérias de Paradela, entusiasta destas coisas, a quem a nossa cultura muito deve» — o ponto de honra do seu curriculum. A prova de que também sobrinho de peixe sabe nadar deu-a Altino, há anos, com a organização de trovas de Carnaval, e, agora, com "A vida de Roberto do Diabo".

«Sendim é uma vila com tradições democráticas e também com um rico historial de teatro popular», diz Altino Martins. «Desde que as pessoas de 70-80 anos se lembram, houve aqui "A Herança do Velho Marinheiro", "A Moleirinha", "Os Reis Falados", "O Roberto do Diabo", "A Ressurreição", "José do Egipto"».[12]

Apesar destes factores favoráveis, outros e de peso se constituíam adversos, no projecto de trazer de novo "O Roberto do Diabo" ao palco: a desertificação, o elevado número de actores e figurantes, a apetência das pessoas para o exercício de outro género de actividades, as despesas. Mas o entusiasmo da população, os apoios da junta de freguesia, da câmara municipal de Miranda do Douro, de várias associações e estruturas culturais, deram consistência ao sonho: «Os ensaios foram feitos num salão grande, da junta de freguesia. Começámos em Fevereiro, duas vezes por semana, terças e sextas, à noite. Só na última semana é que ensaiámos três vezes».

A escolha deste auto concreto para ser representado em 2002 não foi obra do acaso. «Esta peça marcou particularmente as pessoas daqui. Foi em "O Roberto do Diabo" de há 59 anos que, pela primeira vez, entraram mulheres em cena. Até essa data, as mulheres não podiam intervir nas peças». Esta conquista teve um pormenor curioso, como apurou Altino Martins: «A senhora que fazia de Duquesa em 1943 admirou-se por a Duquesa de agora ter sido capaz de dizer uma quadra que ela então recusara, e lha tiveram de mudar:


Ó mulheres, já podeis ver

O que a mim me aconteceu:

Por satisfazer o meu corpo

A minha alma se perdeu».


Os tempos hoje são outros. A marca disso está também na quantidade de gente (profissionais e amadores) que em Sendim este ano registou a comédia em fotografia e vídeo. De 43, que me conste, não sobreviveu uma imagem, um testemunho visual. Talvez por isso, bem quiseram os organizadores que desta vez a Rádio Televisão Portuguesa gravasse tudo, de ponta a ponta.

A expectativa não se concretizou e fez com que «apresentássemos músicas que nada têm a ver com o teatro popular mirandês, com os instrumentos musicais da nossa zona»: a gaita-de-foles, a caixa, o bombo. «Esta outra música gravada era mais um sinal de entrada ou de saída dos actores, mais ou menos da época da peça, mas isto foi pensado assim porque a peça tinha a finalidade de ser filmada pela televisão».

A mesma preocupação televisiva, como nos disse o ensaiador, levou a que o Ponto estivesse à frente do palco, encoberto por um biombo de mantas a todo o comprimento do tablado: «O Ponto está sempre atrás do palco, aqui no teatro popular mirandês, e até entra lá dentro a corrigir os actores. Bom, mas isto foi preparado com algum cuidado, por causa das filmagens».

Critérios, decisões discutíveis? Palavra a Valdemar da Assunção Gonçalves, activo defensor do teatro popular e da cultura mirandesa: «É melhor fazer, cometendo erros, do que não os cometer, nada fazendo».






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VELHAS RAÍZES



Segundo Altino Augusto Martins, o texto de 1943 é o mesmo da representação de 2002. O casco foi guardado por um familiar do antigo ensaiador Simão Fanega, que, «há quatro ou cinco anos, aqui em Sendim, me pediu para tirar fotocópias e me deixou ficar com uma. Guardei-a, bati-a à máquina». Fez alterações ao manuscrito? «Pouca coisa. Só meia dúzia de palavras, que escrevi a negrito, para pôr à consideração das pessoas: Ó pá, há aqui esta palavra, tenho dúvidas...».

De onde veio o casco, não sabe exactamente: «Talvez de Caçarelhos», suspeita. Na opinião de António José Dias da Costa, para além de Sendim em 1943, esta peça foi representada em Vilar Seco, 1921, 1933; e S. Martinho, 1928, 1929.[13]

Valdemar Gonçalves, ob. cit., sobre "A Verdadeira Tragédia do Roberto do Diabo", diz: «O padre Mourinho possuía um manuscrito, encontrado em Vilar Seco (Vimioso), onde foi representado por duas vezes, sendo uma delas em 1934. Possuímos duas versões tendo uma delas sido recolhida em Avelanoso (Vimioso), manuscrito datado de 1927».

Ainda António José Dias da Costa, no Corpus Textual da tese citada, junta «fotocópia de um casco recolhido em Santulhão que foi composto por Francisco António Mondragão oferecido às figuras que o representaram em Abril de 1921, em Vilar Seco. Tem 124 páginas. Por este composto deverá sempre entender-se copiado e talvez adaptado».

O confronto entre este manuscrito e o exemplar dactilografado por Altino Martins permite concluir que os dois textos são coincidentes nos seus traços gerais, mas apresentam frequentes discrepâncias verso a verso. Entre estas, assinale-se a do verso doze da Profecia, que, no texto dactilografado por Altino Martins, consta «Que os moiros lhe deram por herança»; no manuscrito de Mondragão, «Que os seus maiores lhe dão por herança»; e, segundo recorda Especiosa Bodelgo, Duquesa em 1943, «Que os seus maiores lhe deram por herança».[14]

Além destes desajustes, outros há de maior monta: falas e notas cénicas que constam num texto e estão ausentes no outro (casos não muito frequentes). Curiosa é a referência a tiros em pelo menos duas notas cénicas do manuscrito de Mondragão, e só neste, aquando da luta entre o Imperador e o Almirante.[15]

Em síntese, conclui-se: através de diversos testemunhos — sobretudo de Altino Martins — o casco de Sendim em 2002 corresponderá ao de 1943; por outro lado, apesar dos desencontros, há, no essencial e pelo que vimos, coincidência entre os cascos de 2002, em Sendim, e o de António Mondragão.

A fonte inspiradora dos enversados de Sendim e Vilar Seco, tal como dos cascos acima referidos por Valdemar Gonçalves — cujo conteúdo desconhecemos — terá sido uma das muitas reimpressões da tradução do castelhano feita por Jerónimo Moreira de Carvalho: Historia do grande Roberto, Duque de Normandia, e Emperador de Roma, em que se tracta da sua conceição, nascimento, e depravada vida, por onde mereceu ser chamado Roberto do Diabo; e do seu grande arrependimento e prodigiosa penitencia, etc. Lisboa, por Bernardo da Costa Carvalho 1733 4.º.[16]

Fernando de Castro Pires de Lima publica fac simile da página de rosto da Historia do Grande Roberto, Duque de Normandia, e Imperador de Roma, Em que se trata da sua concepção e nascimento, e da sua depravada vida, por onde mereceo ser chamado Roberto do diabo, e do seu grande arrependimento, e prodigiosa penitencia, por onde mereceo ser chamado Roberto de Deos, e prodigios que por mandado de Deos obrou em batalha, 1851, Porto.[17]

Na Biblioteca Pública Municipal do Porto, consultámos a Verdadeira Historia do Grande Roberto Duque de Normandia e Imperador de Roma, Porto, 1900, Collecção de Historias Populares, n.º 6, — uma das muitas reimpressões do texto traduzido por Jerónimo Moreira de Carvalho e cuja intriga, narrada em prosa, corresponde em traços largos à que anima o enversado de Sendim.

Luís da Câmara Cascudo caracteriza Roberto do Diabo como uma «Novela popular no Brasil e Portugal, com fundamento em tradição corrente, na França, Inglaterra e Alemanha, e que se tornou leitura comum na Espanha. Nenhum fundamento histórico possui a historieta editada e reeditada desde o séc. XVI na Espanha, de onde passou a Portugal e, depois de 1840, impressa e reimpressa no Brasil. Nascida de estória popular desde o século XIII na tradição oral francesa, e tendo o episódio uma versão poética, um lay cantado na Bretanha, possui várias redações em prosa. O poema do séc. XIII foi publicado em 1837 por Tributien. Na Inglaterra o romance apareceu impresso nos séculos XV e XVI. A prosa publicou-a Wynkyn de Worde, em 1510, Robert the Devyll (...). Na Alemanha é clássico o estudo de M. Tardel, Die sage von Robert der Teufel in neueren deutschen dichtungen, Berlim, 1900, e na França o volume de E. Löseth, Robert le Diable, Roman d'aventures, ed. F. Didot, Paris, 1903». E, caracterizando a fonte da tradução castelhana (que, por seu turno e como vimos, haveria de ser traduzida para português por Jerónimo Moreira de Carvalho, no séc. XVIII): «Duma versão em prosa, edição de Paris em 1496, La vie du terrible Robert le Diable, lequel fut aprés l'homme de Dieu, veio a tradução castelhana de Burgos, Junho de 1509, La espantosa y admirable vida de Roberto el Diablo, assi al principio llamado: hijo del Duque de Normandia: el qual depues por su sancta vida fue llamado hombre de Dios. Incontáveis são as edições espanholas dos séculos XVI, XVII, XVIII, apesar da inclusão do folheto no Índex Expurgatório do Santo Ofício em 1581».[18] [19]







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GENTE DE PALCO



"A Vida de Roberto do Diabo" integra mais de meia centena de participantes. Em 9 de Junho de 2002, em Sendim, o corpo de actores e figurantes teve a seguinte constituição [20]:



Actores

António Margalho, 60 anos, agricultor, (Almirante Pagão); Lisandra Castro, 13 anos, estudante, (Anjo); Telmo Ramos, 26 anos, Técn. Informática, (Anunciador e Ponto); José Cordeiro, 35 anos, mecânico, (Capitão); Francisco Martins, 30 anos, carpinteiro, (Capitão-general); Celeste Peres, 48 anos, doméstica, (Dama da Duquesa); Violeta Aleixo, 52 anos, doméstica, (Dama da Filha do Imperador); António Pires, 48 anos, sapateiro, (Diabo); Alfredo Fernandes, 63 anos, agricultor, (Duque Alberto); Maria Chumbo, 48 anos, professora, (Duquesa); Bruno Martins, 32 anos, bancário, (Embaixador do Duque Alberto); Francisco Pires, 42 anos, comerciante, (Ermitão); Orquídea Mateus, 35 anos, doméstica, (Filha do Imperador de Roma); Delfim Salgado, 60 anos, electricista, (Imperador de Roma); Óscar Salgado, 32 anos, electricista, (Jesus Cristo); Maria Martins, 52 anos, doméstica, (Júlia Pastora); José Morete, 55 anos, agricultor, (Médico); Carlos Arteiro, 42 anos, canalizador, (Ministro do Duque Alberto); José Cubeiro, 75 anos, reformado, (Ministro do Imperador); Moisés Pires, 56 anos, comerciante, (Primeiro Sargento); José Mourinho, 52 anos, professor, (Professor); Emílio Martins, 28 anos, professor, (Roberto do Diabo/adulto); David Brás, 13 anos, estudante (Roberto do Diabo/moço); Leonardo Martins, 6 meses, (Roberto do Diabo/baptizado); Abílio Paulo, 45 anos, pedreiro, (Rogério Gracioso); Raul Martins, 29 anos, carpinteiro, (Salteador Fulminante); José Preto, 35 anos, agricultor, (Salteador Marto); José Quitério, 40 anos, serralheiro, (Secretário do Imperador); Hermenegildo Geraldes, 69 anos, reformado, (Segundo Sargento); Vitorino Martins, 56 anos, agricultor, (Sumo Pontífice); Manuel Pimentão, 35 anos, trolha, (Embaixador do Almirante); Elisabete Falcão — actriz oculta — (Voz).




Figurantes

Márcia Arteiro, 26 anos, professora, (Nossa Senhora); Ana Martins, 19 anos, estudante, (Devota); Anita Pires, 19 anos, estudante, (Devota); Celina Martins, 19 anos, estudante, (Devota); Mariza Salgado, 19 anos, estudante, (Devota); Mário Strecht, 28 anos, trolha, (Guarda do Palácio do Duque); Sérgio Carção, 24 anos, agricultor, (Guarda do Palácio do Duque); João Ginjo, 13 anos, estudante, (Guarda do Palácio do Sumo Pontífice); Abílio Xavier, 12 anos, estudante, (Militar); Aníbal Preto, 13 anos, estudante, (Militar); António Caveiro, 35 anos, tanoeiro, (Militar); Aquilino Campos, 35 anos, mecânico, (Militar); Celestino Izeda, 16 anos, estudante, (Militar); Avelino Aleixo, 45 anos, trolha, (Militar); Jorge Morgado, 17 anos, estudante, (Militar); Virgílio Carção, 30 anos, licenciado, (Militar); Manuel Martins, 56 anos, agricultor, (Pagem do Baptizado); Carlos Carvalho, 9 anos, estudante, (Rapaz da Escola); José Paulo, 15 anos, estudante, (Rapaz da Escola); Ruben Teresinho, 12 anos, estudante, (Rapaz da Escola); Daniel Cordeiro, 13 anos, estudante, (Rapaz do Veado/Escola); Dinis Pires, 13 anos, estudante, (Rapaz do Veado/Escola).




Outros

Altino Augusto Martins, Ensaiador; Maria Chumbo, Guarda-Roupa; Mário Correia, Som.







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NOTAS



[1] Dia 9 de Junho de 2002.


[2] In "Teatro Popular Mirandês", comunicação apresentada no colóquio sobre cultura mirandesa, Faculdade de Letras do Porto, 26 de Março de 1999.


[3] Para representar o papel de Roberto do Diabo houve três intérpretes em palco: Leonardo Martins (Roberto bebé), David Brás (Roberto moço), Emílio Martins (Roberto adulto).


[4] Na "Comédia Famosa com o título de Roberto do diabo e depois Roberto de Deus", manuscrito de António Mondragão, «ofrecido às figuras que representaram, Abril de 1921, em Villarseco, 14 de Agosto de 1921», e integrado no Corpus Textual da tese de mestrado de António José Dias da Costa — ver caixilho Velhas raízes — esta quadra tem a seguinte redacção: Dizendo, conceba eu, / inda que seja o diabo / e ao diabo ofereci tudo / se fosse do seu agrado.


[5] O folheto de cordel inspirador do enversado menciona dois episódios para ilustrar o «grande aborrecimento aos judeus» que tinha Roberto e as humilhações que infligira a «um judeu riquíssimo» e aos noivos e convidados de uma festa de casamento, quando, em Roma, cumpria penitência. Estas personagens nenhuma ligação têm com o Almirante pagão, caracterizado logo adiante aos episódios referidos: «Tinha o imperador por vassallo um almirante pagão e infiel, que era grande senhor muito poderoso, o qual mandou pedir ao Imperador uma única filha, que tinha (ainda que era muda), para mulher. E não querendo o Imperador dar-lh'a veio o almirante com um grande exercito contra o Imperador e entrando-lhe pelas suas terras, fazendo-lhe grandes destruições, foi preciso o Imperador sahir-lhe ao encontro com toda a gente que pôde juntar ainda que era menos do que a que o almirante tinha». À luz destes elementos, o enversador terá usado judeu — em «Almirante judeu» — como sinónimo de pagão, «Almirante Pagão», infiel, não cristão, incréu, mouro, enfim.

É entretanto de notar que, quer no enversado, quer no folheto de cordel que lhe serviu de fonte, aparece «pagão e infiel» e não «mouro», embora e como damos nota em «Velhas raízes», no 12º. verso da Profecia, correspondente ao texto levado à cena em Sendim, conste, estamos em crer por mudança introduzida no enversado original através de um sinuoso processo de transcrições: «Que os moiros lhe deram por herança».


[6] Ainda no manuscrito de António Mondragão, ver nota 3, lê-se repetição em vez de repelição.


[7] In "Teatro dos concelhos de Vimioso e Miranda do Douro", Tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996.


[8] In "Bibliografia e Inventário do Teatro Popular do Ciclo Guerreiro", Cadernos Vianenses, tomo IV, 1980.


[9] Roberto já a cumprir penitência em Roma para expiar velhos pecados, um Anjo lhe aparece um dia, lhe dá um cavalo branco, estandarte e espada, e o incumbe de ir lutar ao lado do Imperador, contra o Almirante. Nesta passagem e no texto dactilografado por Altino Martins (também no manuscrito de António Mondragão), os confrontos envolvendo estes três protagonistas (e ainda o Ministro do Imperador) decorrem a cavalo, embora na representação o façam a pé, em cima do palco. Sobre o assunto, disse o ensaiador: «Como agora há falta de cavalos, eu sugeri que se fizessem uns cavalos de madeira e os actores em palco tivessem isso. Mas as pessoas não aceitaram. Os antigos lembravam-se que, noutros tempos, havia cavalos a sério, três a cinco. O Almirante, o Imperador e depois o Roberto apareciam de várias ruas e, montados, lutavam no largo, frente ao palco, no chão».


[10] Depois de retirado do vulcão pelo Anjo — ainda com referência aos episódios posteriores à conversão do herói, numa breve síntese e conforme o texto de Sendim — Roberto vai à cova dos ladrões, mata os antigos comparsas, parte para Roma. Os pais exultam com a milagrosa conversão. O Duque manda a Roma as suas tropas, sob o comando do Capitão-general, ajudar o Imperador na luta contra o Almirante Pagão. Roberto recorre ao apoio espiritual do Pontífice e é mandado a um Ermitão. Este, iluminado pelo Anjo, manda que durante sete anos — fazendo-se de louco e na companhia de cães — Roberto cumpra penitência em casa do Imperador de Roma, pai da princesa muda. Cumprem-se os designíos celestes, até que um dia o Anjo manda Roberto, incógnito, acudir ao Imperador. (Na representação, decorre assim esta passagem: frente ao tablado, no espaço entre mantas reservado ao Ponto, Roberto monta um cavalo branco. Cavalo à arreata, alguns metros são percorridos até ao eixo de cena. Roberto desmonta, sobe ao tablado). Executada a ordem, Almirante derrotado, o Imperador promete dar a filha em casamento ao cavaleiro desconhecido. O Almirante finge ser tal personagem e reclama a mão da muda. Mas esta começa a falar, denuncia a tramóia, proclama Roberto como vero credor de sua mão. Casam, Roberto é proclamado pelo sogro Imperador de Roma e o casal parte para a Normandia. Com Roberto pelas costas, o Almirante mata o velho Imperador. Roído por um súbito pressentimento, Roberto despede-se dos pais, regressa a Roma. No caminho encontra e mata o Almirante (neste passo o texto prevê Roberto a cavalo, o que não acontece em cena) e, pelo Pontífice, é proclamado Roberto Milagroso.


[11] In "Dicionário do Folclore Brasileiro", São Paulo, 1954, pág. 550.


[12] António José Dias da Costa, in "Teatro dos concelhos de Vimioso e Miranda do Douro", refere as seguintes representações em Sendim: "Auto da Ressurreição", "Roberto do Diabo" (1943, regrador Simão Fanega), "Reis Falados" (regrador Simão Fanega), "Rosa do Adro", "José do Egipto" (1988, regrador José Almendra), "Guerra do Sendinum" (1992, regrador Emílio Martins), "O Culantro" (1993, regrador Emílio Martins).


[13] In "Teatro dos concelhos de Vimioso e Miranda do Douro".


[14] Ainda sobre o que se quer traduzir quando se fala de «frequentes discrepâncias verso a verso», transcrevem-se aqui, conforme o original, as primeiras oito quadras das segundas Profecias do manuscrito de António Mondragão, permitindo confrontá-las com as da representação de Sendim, transcritas na reportagem: Na parte primeira, representado, / já vistes o que eu vos espliquei, / na parte segunda também vos direi, / em como Roberto foi perdoado. // Um anjo do ceo por Deus é mandado, / estinguir o fogo daquelle volcão, / tirar a Roberto da escuridão, / e mandalo a Roma a ser confessado. // Depois de seus paes lhe haver perdoado / marchou para Roma a fazer confissão, / o papa o mandou a um ermitão / que vivia no monte, a ser confessado. // Depois que ao monje se tem confessado, / um anjo aparece e lhe faz referencia, / mandado por Deus a traser penitencia, / que Roberto aceitou com todo o agrado. // Mudo sem fala, fazendo loucuras, / sete anos assim teria que andar, / comendo somente o que podesse tirar, / a todos os cães que visse nas ruas. // Para Roberto alcançar o perdão, / e cumprir penitencia de tanto rigor / dirigiu-se a casa do imperador, / e ali viveo na companha d'um cão. // O soberano vio e observou, / o mudo o ósso ao cão lhe tirar, / manda-lhe logo dar de jantar, / por acenos o mudo não aceitou. // O imperador vendo isto, pasmado ficou / porque o louco p'ro cão olhava mui serio, / conhecendo logo este misterio, / dobrar a comida ao cão lhe mandou.


[15] Disparos e tiroteio é recurso muito usado no teatro popular. No "Auto da Floripes", no lugar das Neves, Viana do Castelo, — segundo testemunho de Manuel Costa Pereira — houve um tempo em que na representação havia tiros de caçadeira. A pólvora seca hoje aí não entra, mas continua a animar o "Auto de Floripes", em Palme, Barcelos. Ali perto, em Portela Susã, no "Auto de Santo António", o exército cristão, fardado e armado de caçadeira, remata certas passagens bélicas com intenso tiroteio. Ainda no Minho, em "Os Turcos de Crasto", perto de Ponte de Lima, há disparos furtivos de um paisano, que alveja as forças otomanas em dois momentos e que no elenco consta como o Homem do Tiro. Bombarda não falta nas "Bugiadas", em Sobrado, Valongo, aquando do confronto entre as forças acasteladas dos Mourisqueiros e Bugios. Em Argozelo, Trás-os-Montes, no casco de Luciano Manuel Lopes, "A Famosa Comédia dos Doze Pares de França", o Almirante turco é morto a tiro. Entretanto, na representação que aí presenciámos em Agosto de 2000, o Almirante foi morto à espadeirada, mas os cristãos executores gritavam — conforme testemunho do chefe turco sentenciado, Arnaldo Pires: Pum! Pum! Pum! Em Vale Formoso, Covilhã, em "A Descoberta da Moura", na floresta que guardava a princesa moura que se fez cristã, lá entravam caçadores, espingardas, tiros. E o castelo mourisco foi assaltado, a mourinha Maria Suzel Azevedo libertada, à força da bombarda de artilharia. No Algarve, espingardas não faltam em mãos cristãs na localidade de Santa Catarina da Fonte do Bispo, Tavira, no "Combate aos Mouros" (representação em 1996 e 16/17 de Agosto de 2003). A mudez das espingardas dos soldados da cruz é compensada, como testemunhámos em 2003, pelo muito fogo e estridência que consome o castelo antagonista.


[16] In "Diccionario Bibliographico Portuguez", Estudos de Innocencio Francisco da Silva, Lisboa, 1859.


[17] Literatura de Cordel, in "A Arte Popular em Portugal", pág. 266, 2.º vol., s/ data.


[18] In "Dicionário do Folclore Brasileiro", págs. 549 e 550.


[19] Sobre várias das representações populares citadas na nota 15, alguns trabalhos e reportagens que publiquei poderão ajudar ao aprofundamento desta temática: "Os Turcos de Crasto", Notícias Magazine (NM) n.º 503, 13 Jan 2001; "A Descoberta da Moura", NM n.º 476, 8 de Jul 2001; "Um Teatro de Sete Fôlegos" (sobre o Auto de Santo António em Portela Susã), Adágio n.º 27, Jun/Set 2000; "Velho auto popular regressa ao tablado" (sobre os Doze Pares de França em Argozelo), Jornal de Notícias, 29 de Ago 2000; "Floripes Negra", ed. Cena Lusófona, 2001, Coimbra.

De resto e para além das achegas ao longo do texto, aqui se adiantam curtas e importantes referências bibliográficas: Leandro Quintas Neves, "Auto da Floripes", 1963; Maurício Guerra, "Auto da Floripes nas Neves e em Palme", 1982; "Auto de Santo António", separata de Cenáculo, n.º 72, 1980; Paulo Raposo, "Auto da Floripes, 'Cultura Popular', Etnógrafos, Intelectuais e Artistas", Etnográfica, n.º 2, Lisboa, 1998; Alberto A. Abreu, "Auto da Floripes", Viana do Castelo, 2001; A. Machado Guerreiro, "Teatro Popular Português" (recolha de J. Leite de Vasconcellos), I a III, 1976-79, Coimbra; João R. Sousa, "Turquia", 1984, Crasto; João David Pinto Correia, "Os Romances Carolíngios da Tradição Oral Portuguesa", I e II, 1993-94, Lisboa; Azinhal Abelho, "Teatro Popular Português", I a VI, 1968-71, Braga.


[20] No dia 8 de Agosto de 2002, à noite, subiu de novo à cena em Sendim "O Roberto do Diabo", com o mesmo corpo de actores e no mesmo espaço de Junho. Desta vez foi possível assegurar a gravação vídeo pela RTP. Ainda segundo informação do ensaiador Altino Martins: «Nesta representação, fizemos mais uma capela no monte, interpretando que na peça haveria também uma ermida afastada. O Ermitão é o mesmo actor, faz os dois papéis, corre o palco todo e vai para o monte, para a capela, que montámos antes da escola».